09/11/2009

Entrevista à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Santa Cruz


Dr.ª Joana – Assistente Social na C.PC.J. de Santa Cruz

Dr.ª Odília Franco – Enfermeira (representante da Saúde na C.P.C.J. de Santa Cruz)

Telma - Quais são as competências da CPCJ?

Dr.ª Joana – Nós temos como competências garantir a promoção e a protecção dos direitos da criança, sendo que, regemo-nos por vários princípios da lei 147/99. A criança pode ser mal tratada, abusada sexualmente ou abandonada e nós visamos garantir a promoção e protecção dos direitos da mesma.

Joana – Qual o número de crianças e jovens em risco no concelho de Santa Cruz?

Dr.ª Joana - Em Santa Cruz existem cerca de 300 casos, a nível de processos de não agregados. Esta estimativa abrange as freguesias do Caniço, Gaula, Santo da Serra, Camacha e Santa Cruz. O concelho está em 2º lugar a nível regional.

Eduardo – Quais são os tipos de maus tratos frequentes?

Dr.ª Joana – Os tipos de maus tratos mais frequentes são, o abandono escolar, a negligência, os maus tratos físicos e psicológicos e alguns abusos sexuais, sendo que estes casos são logo encaminhados para o tribunal.

Cláudia – Como é que são detectados esses casos?

Dr.ª Joana – As principais fontes de detecção dos casos são através da escola, do Centro de Segurança Social, do centro de saúde e através dos próprios vizinhos. Muitas vezes são as próprias crianças/vítimas a fazerem as queixas. São denúncias escritas (carta), anónimas ou identificadas, presenciais, sendo a anónima a mais comum.

Telma – Que respostas dá a CPCJ a estes casos e através de que recursos humanos especializados acompanham estas situações de risco?

Dr.ª Joana – Numa primeiro fase, a CPCJ recebe o processo/denúncia. Depois faz o diagnóstico da situação com o consentimento dos pais, pois para intervir é sempre necessária a aceitação por parte destes, bem como o da própria criança maior de 12 anos, que assina uma declaração. Se não existir esses consentimentos o processo é mandado para o tribunal. Quando existe esses consentimentos fazemos uma entrevista de forma a analisar a situação e remetemos relatórios sociais a todos os parceiros que se adequam à situação em causa e que estão presentes/ligados à criança, por exemplo, o centro de saúde, a escola, a segurança social. Após a chegada da resposta dos relatórios, nós reunimos a Comissão Restrita, composta por 11 elementos, constituída por psicólogos, sociólogos, enfermeiros, professores, assistentes sociais e obrigatoriamente um representante da Câmara Municipal, do Centro da Segurança Social, e da Educação, para podermos analisar o caso. Deliberamos se não houver motivo da intervenção, arquivamos, se houver motivo de intervenção elaboramos um plano da medida que posteriormente é assinado um acordo de promoção e protecção com todos os intervenientes.

Joana – Considera que os recursos humanos disponíveis são os suficientes?

Dr.ª Joana – Trabalhamos muito bem, somos uma equipa muito boa, articulamo-nos todos muito bem. A nível dos recursos da Comissão Restrita, não podemos exceder o limite, pois está tudo previsto na lei. A nível dos parceiros, por vezes, encontramos algumas dificuldades em conseguir respostas para os agregados, para as crianças, para os pais e muitas vezes os pais são resistentes à própria mudança...

Drª Odília – (...) Temos muita dificuldade em obter as consultas a nível da saúde, nomeadamente terapia da fala, e consultas de psicologia.

Telma - Mesmo que a C.P.C.J. acompanhe e lhes dêem condições, os pais podem nem sempre levá-los às consultas...

Dr.ª Joana – Nós não damos consultas, quem os leva (crianças e jovens) são os próprios progenitores, mas isso fica num acordo, se o acordo estabelece que a criança tem de ir ao Centro de Saúde para ser acompanhado nas consultas de rotina, posteriormente contactamos o Centro de Saúde e verificamos se o acordo está a ser cumprido ou não. Se este não estiver a ser cumprido, significa que a mãe está em falta, deste modo nós podemos enviar a situação para o Ministério Público por falta de cumprimento...

Drª Odília – Por vezes os pais são mais resistentes. Temos muitos pais que são alcoólicos e não reconhecem que é uma doença, acreditam que o álcool não faz mal a ninguém, resistindo à ida das consultas de terapia ou de saúde mental, por outro lado, muitos acabam por aceitar quando são confrontados com a possibilidade/ameaça do caso transitar para o Ministério Público.
Acompanhamos a execução da medida, e os parceiros juntamente connosco dão a resposta, por exemplo, a escola dá a resposta a nível da higiene, da assiduidade e da negligência que nos indica se os pais participam no processo educativo da criança ou não. A nível do centro de saúde, os enfermeiros e o médico de família, e caso seja pertinente, propomos consultas de psicologia. Relativamente às vistas domiciliárias também desenvolvemos vigilância. Elaboramos pareceres sobre os apoios que as famílias eventualmente possam necessitar. Nós somente acompanhamos e articulamos com as entidades com vista a que essas respostas sejam dadas.

Professora Cláudia – Qual o papel do técnico de acção social na C.P.C.J. a nível de visitas ao domicílio?

Dr.ª Joana – Não fazemos visitas domiciliárias, só em último caso a enfermeira que está aqui presente, vai como elemento do centro de saúde e não como elemento da comissão.

Drª Odília – Se houver necessidade desse acompanhamento por parte de uma assistente social nós comunicamos à segurança social e aí a técnica é que vai ao domicílio. Se for necessário acompanhar aquela família, elas é que intervêm dando apoio. A nós, elementos da comissão, não vamos ao domicílio, senão pode-se dar um atropelo, por exemplo, se muitas entidades tentarem intervir, acabam por não conseguir alterar a realidade dessas pessoas.
Consoante as necessidades das crianças ou dos jovens deliberamos de maneira a chegar a um acordo com as medidas a serem tomadas. Depois implicamos neste acordo aquelas instituições que achamos que sejam pertinentes para o bem-estar das crianças ou dos jovens em questão. Essa instituição é que vai fazer esse acompanhamento, portanto, o acordo normalmente é feito durante 1 ano com a comissão periódica de 3 ou de 6 em 6 meses. Quando chega a altura de verificarmos como estão a correr as coisas, nós contactamos ou por telefonema ou por escrito, através de relatórios para ver se o acordo está ou não a ser cumprido. Perante isso nós damos continuidade.

Drª Joana – E nós o que fazemos a nível da comissão é acompanhar a execução dessas medidas, adequando os parceiros para ver se está a ser cumprido. Nós é que chamamos os pais e fazemos as entrevistas de acompanhamento, também alertamos os pais muitas vezes para o que podem e o que não devem fazer, também somos um pouco conselheiros não é?! Não estamos aqui só para julgar, também estamos aqui para ajudar.

Drª Odília – Também para orientar, arranjar estratégia que os pais nunca vão conseguir ver, se conseguirem se organizar como família e muitas vezes até quando alguma coisa não se está a passar tão bem como desejavam. Quando há indícios de que algo não está a correr bem, a instituição entra em contacto com a família e através de entrevistas averiguamos o que se está a passar, e o que podemos fazer para ajudar.

Professora Cláudia – A terapia familiar é um recurso?

Drª Joana – Ainda não existe cá na Madeira.

Drª Odília – Na Madeira não existe. Há mediação familiar, mas não em grande escala.

Drª Joana - Há psicólogas que fazem, mas é apenas no privado.

Drª Odília - No público, não temos ninguém a fazer isso.

Drª Joana – Se calhar era pertinente, até porque é fundamental nós não olharmos para as fragilidades mas sim concentrarmo-nos em potencializar as qualidades que eles têm, pois as fragilidades perdem a importância perante aquilo que eles são capazes de fazer.

Drª Odília - E nós temos que valorizar isso, senão, não conseguimos nada, às vezes pode ser uma pequenina coisa, mas temos de pegar nessa pequenina coisa para ajudá-los a seguir...

Telma - Para que se sintam motivados.

Eduardo - E concorda que o número de crianças em risco de que a C.P.C.J. tem conhecimento, é apenas a “ponta do iceberg”?

Telma Isto é, se existem muitos casos que estão...

Drª Odília - (…) Camuflados.

Telma - Exacto.

Drª. Joana - Para já eu vou corrigir a questão, não são crianças em risco, em risco estão todas, o que existe são crianças em perigo, as quais nós acompanhamos.

Todos nós estamos sujeitos ao perigo, são só aquelas que estão assinaladas por nós. Podes reformular a pergunta por favor.

Eduardo - Concorda que o número de casos de crianças em perigo de que a C.P.C.J. tem conhecimento é apenas a “ponta do iceberg”?

Drª Odília - Sim, nós temos a percepção de que existem muitos casos de que não temos conhecimento, sabemos que existem, calculamos que sim, realmente o número tem vindo a aumentar, porque há uma maior informação, há uma maior abertura e há pessoas que denunciam e que sabem que podem fazer uma denúncia anonimamente, agora que existem muitas crianças a sofrer e nós não temos conhecimento, isso existe, porque ainda há muita gente que tem medo de fazer denúncias pelas consequências que as mesmas podem originar.

Telma – As próprias mães, muitas vezes têm medo de fazer as denúncias?

Drª Odília – É claro que muitas mães e famílias têm medo, mas há já muitas que vêm cá fazer as denúncias. Nota-se uma maior abertura, portanto, as pessoas começam a ver a C.P.C.J. não como a instituição que lhes vai tirar as crianças, mas quem lhes vai tentar ajudar. Já nos procuram com o intuito de pedir ajuda, pedir socorro. Há muitas mães que fazem a denúncia mas também pais e irmãos.

Dr.ª Joana – Os próprios jovens que já conhecem os seus direitos e os seus deveres, já fazem as suas próprias denúncias.

Drª Odília – Eles mais depressa sabem os seus direitos do que os deveres. Por vezes, acham que não os têm mas sim os outros. (risos) Muitos jovens e vizinhos vêm cá fazer a sua denúncia à instituição.

Dr.ª Joana - Dantes estava tudo camuflado, pois muita gente sabia o que acontecia e não fazia nada.

Joana Até mesmo por causa duma mudança de mentalidade...

Drª Odília - Exacto. A partir do momento em que os maus tratos se tornaram públicos, as queixas aumentaram e as pessoas sentiram-se mais protegidas

Cláudia – Considera que a região (R.A.M.) tem uma boa cobertura em relação a esta problemática?

Dr.ª Joana – Isto para já não é uma problemática. São várias problemáticas, tais como, negligência, maus tratos. Se conseguirmos responder ao nível de região? Acho sim, pois tem vindo a evoluir. É claro, que tanto aqui como no continente deparamo-nos com dificuldades, seja numa coisa ou noutra. Há sempre dificuldades, a nível do ensino, a nível da saúde e habitação principalmente.

Drª Odília – Temos muitos casos em que há negligência porque também as condições socioeconómicas e habitacionais não são as mais favoráveis. Nós não temos casas para dar a ninguém.

Dr.ª Joana – O importante é não desistir (…) isso é que é importante.

Professora CláudiaO trabalho de equipa é também muito importante...

Drª Odília – As pessoas têm que trabalhar em equipa, quanto mais se fecharem dentro das suas “capelinhas”, é pior, pois ninguém consegue fazer tudo sozinho, logo, se trabalharmos com os outros, nós conseguimos fazer alguma coisa.
Caso trabalhássemos sozinhos isso se tornaria mais difícil até para a própria família, isto é, se não trabalhássemos com os nossos parceiros na comunidade, tais como os centros de saúde, a segurança social etc., acabaria por haver uma invasão naquela família e o que teríamos feito para a ajudar?! Se nos reunirmos entre parceiros e vermos o que conseguimos fazer, mais depressa uma porta se abre e assim, não estaremos a invadir a privacidade daquelas mesmas visto que estas já estão molestadas/bafejadas pelas carências socioeconómicas.
Além disso, as carências socioeconómicas e habitacionais trazem outros problemas como a toxicodependência, a prostituição etc. E se for uma instituição isolada não consegue fazer nada, nós temos todos de dar a mão e trabalhar em equipa, só assim conseguimos alguma coisa, mas para isso temos de ter técnicos com mentes abertas e dispostos a trabalhar. Mas aqui, felizmente, conseguimos trabalhar em equipa (…).

Telma – Em relação ao trabalho do técnico de acção social tem alguém a fazê-lo?

Drª Odília – Temos, temos a doutora Joana que é assistente social, temos também um representante da segurança social aqui na comissão, que faz mesmo parte (da orgânica), como representante pode estar na comissão restrita ou alargada, estando sempre incluída e também há um representante da saúde, da educação e da câmara. Seja na restrita ou na alargada, têm sempre que fazer parte da comissão. Depois os outros elementos que fazem parte da comissão, são colaterados.

Joana – Até que idade a C.P.C.J. pode proteger?

Dr.ª Joana – Até ao 18, com autorização do mesmo, até aos 21 anos. Mas o jovem tem de fazer um requerimento à comissão restrita e pedir para ser acompanhado até aos 21.

Drª Odília – E sempre que o jovem queira, não lhe fechamos as portas.

Joana – E estando o jovem em situação de dependência?

Dr.ª Joana – Se fizer 18 anos já não pode, tem que dar entrada antes de perfazer os 18 anos, fazendo um requerimento, caso já esteja a ser acompanhado pode continuar . Imagina que entra uma denúncia e estás a perto de completar os 18 anos, é aceite. Posteriormente, já não é da responsabilidade da instituição. Depois dos 18 anos os casos são directamente encaminhados para o ministério público, se já estiver a ser acompanhado, existem medidas a aplicar nomeadamente em relação à autonomia de vida. São dados meios ao jovem para começar a criar bases.

Drª Odília – Suponhamos que um jovem que tem 17 anos e está prestes a completar os 18, este jovem vive num meio que não é nada favorável, os pais são toxicodependentes, alcoólicos, não tem condições de sair deste ambiente e quer sair deste ambiente, então é encaminhado para uma instituição, para um projecto de autonomia de vida. É integrado numa residência de autonomização oferecendo-lhe condições para o utilizar, recebe uma verba (em dinheiro), de maneira a saber geri-lo durante o mês, é feita uma supervisão por técnicos que analisam como esse jovem em autonomização, se organiza e avaliam se é capaz de ir para o meio natural de vida e de serem autónomos. Têm uma verba para gerir, gerem à sua maneira, depois há uns que estudam, outros que estão no centro de formação profissional, outros que começam entretanto a trabalhar.

Dr.ª Joana – Os critérios são muito exigentes, têm que ter uma cabeça minimamente organizada, e se for um jovem de uma certa debilidade tal não será possível, tudo depende do jovem.